A idéia de que o Brasil precisa de um currÃculo nacional bem definido para suas escolas vem ganhando força, no lugar da antiga noção de que, em nome da liberdade, criatividade e respeito à s diferenças, cada um poderia ensinar (e sobretudo não ensinar) o que achasse melhor. Mas, como fazer um bom currÃculo, que separe o que é essencial do acessório e não caia nos modismos do momento? O artigo abaixo, mostra o que é necessário para isto, a partir da experiência internacional.
CurrÃculo, a Constituição da educação
O Ministério da Educação (MEC) anunciou, com atraso considerável, que vai apresentar sua proposta de currÃculo. A Constituição de 1988 promoveu avanços notáveis em várias áreas, apesar de inúmeras disfunções criadas. Mas faltou uma visão de futuro mais clara e pragmática. Resta assegurar que, da mesma forma, a iniciativa atual não aumente ainda mais o nosso atraso.
A última decisão nessa área resultou nos desastrados “parâmetros curriculares nacionais”. A maioria das iniciativas do MEC que envolvem questões de mérito tem sido sistematicamente cativa de mecanismos e critérios corporativistas e de duvidosos consensos forjados em espúrios mecanismos de mobilização. Tradicionais aliados do ministério, inclusive internamente, têm aversão à ideia de currÃculo e mais ainda de um currÃculo nacional. Documentos desse tipo, produzidos por alguns Estados e municÃpios em anos recentes, continuam vÃtimas do pedagogismo. Isso é o melhor que temos.
O assunto é sério demais para ser deixado apenas para os educadores e especialistas. Nem pode ser apropriado pelo debate eleitoral. O Brasil – especialmente suas elites – precisa estar preparado para discutir abertamente a questão. Aqui esboçamos os contornos desse debate.
O que é um currÃculo? Um documento que diz o que o professor deve ensinar, o que o aluno deve aprender e quando isso deve ocorrer. Em outras palavras, conteúdo, objetivos (o termo da vez é expectativas de aprendizagem), estrutura e sequência. Para que serve um currÃculo? Primeiro, para assegurar direitos: o currÃculo especifica o que o aluno deve aprender. É um instrumento de cidadania fundamental para garantir equidade e os direitos das famÃlias. Segundo, para estabelecer padrões, ou seja, os nÃveis de aprendizagem para cada etapa do ensino: atingir esses nÃveis é o dever, que cabe ao aluno. Terceiro, para balizar outros instrumentos da polÃtica educativa, como avaliações, formação docente e produção de livros didáticos, instrumentos essenciais em qualquer sistema escolar. Os currÃculos, sozinhos, não mudam a educação.
Por que ser de âmbito nacional? A experiência dos paÃses mais avançados em educação, sejam federativos ou não, indica a importância de uma convergência. Depois do advento do Pisa, mesmo paÃses extremamente descentralizados, como SuÃça, Alemanha ou EUA, têm promovido importantes convergências em seus programas de ensino, até em caráter de adesão. Num municÃpio, um currÃculo básico permitirá que alunos transitem por diferentes escolas sem que se instaure o caos a que hoje submetemos nossas crianças e seus professores.
Como saber se um currÃculo é bom? A condição é que seja claro. Se o cidadão médio ler e não entender, não serve. Deve ser parecido com edital de concursos: você lê, sabe o que cai no exame e sabe como precisa se preparar. O currÃculo não é exercÃcio parnasiano ou malabarismo verbal.
Deve também levar em conta os benchmarks, as experiências dos paÃses que, usando currÃculos robustos, avançaram na educação. É preciso cuidado para não confundir os currÃculos que os paÃses adotam hoje, depois de atingido o nÃvel atual, com os currÃculos que os levaram a esse patamar.
A proposta deve ser dinâmica e corresponder à s condições gerais de um sistema. O currÃculo não pode ser avaliado isoladamente de outras polÃticas, em especial da condição dos professores. Hoje a Finlândia, com os professores que tem, pode ter currÃculos mais genéricos do que há 15 ou 20 anos. A análise dos benchmarks sugere quatro outros critérios para avaliar um currÃculo: foco, consistência, rigor e referentes externos.
Um currÃculo deve ter foco, concentrar-se no primordial e só em disciplinas essenciais, cuidando de poucos temas a cada ano, sedimentando a base disciplinar e evitando repetições. William Schmidt, que esteve recentemente no Brasil, desenvolveu escalas comparativas que permitem avaliar o grau de focalização de currÃculos de Matemática e Ciências.
Deve ter consistência, isto é, respeitar a estrutura de cada disciplina. Isso se refere tanto aos conceitos essenciais que devem permear um currÃculo quanto à organização do que deve ser ensinado em cada etapa ou série. Por exemplo, um currÃculo de LÃngua Portuguesa considerará as dimensões da leitura, escrita e expressão oral, levando em conta o equilÃbrio entre a estrutura e as funções da linguagem e contemplando o estudo dos componentes da lÃngua (ortografia, semântica, sintaxe, pragmática).
Um currÃculo deve ter rigor, ser organizado numa sequência que evite repetições e promova avanços a cada ano letivo. Esses avanços devem observar a relação entre disciplinas e a capacidade do aluno de estabelecer conexões entre elas. Interdisciplinaridade e contexto não são matérias de currÃculo, são consequência deste.
Um currÃculo deve ter referentes externos claros. Um currÃculo de pré-escola deve especificar tudo o que a criança precisa para enfrentar com sucesso os desafios posteriores do ensino fundamental. Isso não significa tornar o pré uma escola antes da escola: currÃculo não é proposta pedagógica.
Já o ensino fundamental deve preparar o indivÃduo para operar numa sociedade urbana pós-industrial. O Pisa não é um currÃculo, mas contém sinalizações que sugerem o que é necessário para a formação básica do cidadão do século 21. É uma boa baliza para o ensino fundamental. Os currÃculos do ensino médio, por sua vez, devem ser diversificados, contemplando diferentes opções profissionais e acadêmicas. Pelo menos é assim que funciona no resto do mundo que cuida bem da educação e se preocupa com o futuro de sua juventude.
Finalmente, o que um currÃculo não deve ser? Um exercÃcio de virtuose verbal, um manual de didática, a advocacia de teorias, métodos e técnicas de ensino, uma vingança dos excluÃdos e muito menos um panfleto ideológico ou uma camisa de força. Muito menos deve ser o resultado de consensos espúrios.
O currÃculo definirá se queremos cidadãos voltados para a periferia ou o centro, para o particular ou para o universal.
Psicólogo, doutor em Pesquisa Educacional e presidente do Instituto Alfa e Beto
Pubicado em O Estado de São Paulo, 02 de janeiro de 2012
Fonte: http://www.schwartzman.org.br/sitesimon/?p=2637&lang=pt-br
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